Aos nossos mortos, uma voz viva

Em meio ao turbilhão de pensamentos que cruzam nossas mentes no decorrer das horas de uma aula, sempre me causou um misto de espanto e satisfação a interrelação que passamos a estabelecer entre as complexas teorias que lutamos para depreender simples histórias e acontecimentos de nosso dia a dia. Desde o início deste curso, quando recebíamos instruções sobre como delimitar um objeto editorial para ser pensado e trabalhado durante o semestre, cruzavam-se em minha mente os novíssimos pensamentos com que passava a ter contato, o próprio objeto com que trabalhei durante tantos anos e – o que mais me inquietava – uma historinha curiosa e despretensiosa contada meses antes por uma amiga de minha irmã, muito cismada com as diferenças percebidas entre os costumes da cidade em que nascemos e aqueles percebidos na cidade de outro estado em que passara a cursar graduação. Em Paranaíba/MS, contou animada a menina, em algumas manhãs os moradores de seu bairro são acordados por um carro de som que passa anunciando os falecimentos mais recentes da cidade. “Aqui também devia ser assim, né?”, ela arrematou. Fora do âmbito das instituições políticas em que sempre circunscrevi minha pesquisa, o caso excêntrico (para mim, é claro) começava a ganhar contornos de um possível objeto de reflexão, ao qual dedicarei essa postagem, justamente por representar a possibilidade de observar a partir de uma nova perspectiva um dos interesses que sempre motivaram meus trabalhos de pesquisa: a relação entre a efemeridade da voz e a perenidade da escrita.

Eu, nascida no litoral de SP, nunca tinha ouvido falar de uma forma de obituário que não fosse escrita nos jornais impressos ou online. E chamou minha atenção, logo de imediato, o que parece ser uma apropriação de certo tipo de tecnologia para um fim outro que não aquele para o qual foi primeiro desenvolvido, ou seja, uma ênfase distinta na relação entre homem e objeto que tem por fim iminente a proliferação de invenções e, para além disso, a maneira como essa apropriação e proliferação produz comportamentos e subjetividades. Penso, inclusive, em tudo aquilo que passamos a delegar às máquinas… No meu mundo particular, qualquer um que tivesse interesse em informações sobre os falecimentos da região, precisaria comprar ou assinar um jornal; precisaria, portanto, de capital financeiro e também de capital simbólico (poder comprar, ter acesso à internet, saber ler, etc). No mundo real e atual, mesmo que dispensemos tecnologias avançadas e supermodernas, não é preciso abrir o jornal, não é preciso saber ler, tampouco é preciso questionar seu próprio interesse na informação: o outro, mediante o uso de máquinas de locomoção e de amplificação do som, traz a informação até nós.

Aparentemente, a prática é mais comum do que minha pouco viajada cabeça pôde imaginar… O vídeo mostra a mesma prática em Botucatu, no interior de SP

“Eu acho muito legal. Todo respeito e sentimento aos falecidos”*

Nota-se que as questões sensíveis que orbitam a temática da morte no imaginário social ocidental se vêem simbolizadas pelo “obituário móvel” em diversos níveis. Em um mundo em que os valores são medidos pelo peso do capital, frequentemente traveste-se o movimento financeiro de amor, de respeito e de compaixão. O custo envolvido na aquisição de um carro, de combustível para abastecê-lo, de um aparelho de som e na contratação de um motorista –  que, ao mesmo tempo, é o locutor que empresta sua voz aos autofalantes – supera o investimento necessário para a redação, impressão e circulação de um obituário tradicional. Afinal, quanto vale honrar a vida de seus amados? Aos mortos cujos nomes se ouve em alto e bom som, parece ser atribuído um status mais elevado do que lhes teria sido atribuído por uma empoeirada e esquecida nota de jornal. Mas creio que esta seja apenas parte da razão que explique as condições de emergência desses discursos: parece haver algo na relação entre a “voz viva” e a “letra morta” que contribui com o estabelecimento dessa rede de valores. Salazar (1999), referindo-se ao século XVII, nota os movimentos de “um culto à voz na idade da prensa”, enquanto Rousseau, ele mesmo nascido em 1712, afirmava que

Ao escrever, somos obrigados a tomar todas as palavras na acepção comum, porém aquele que fala varia as acepções através dos tons, determina-os como deseja; menos obrigado a ser claro, confere maior importância à força e não é possível que uma língua que se escreve conserve por muito tempo a vivacidade daquela que é somente falada. (2008, p. 116)

É, desta forma concebida, a voz humana a responsável por este desejável balanço entre o silêncio dos mortos e o respeitoso ruído dos vivos que os lembram, e assim nos aproximamos de compreender os efeitos de certa nostalgia ou vontade de voz que parecem, neste caso, impregnar a maneira como a experiência humana se relaciona com a morte e fazer deslizar os sentidos dos textos que daí derivam.  Se objetos editoriais podem ser definidos como distribuidores de fluxos de textos, o carro obituário não escapa a essa caracterização: ele é, portanto, uma produção que nos permite descartar outras, trabalhando em favor da formação de um espaço e nele circunscrevendo um conjunto de sistema de objetos ligado a um conjunto de sistemas de ações. E é da voz humana, mediante o uso de certos objetos técnicos, o papel que se exerce fundamentalmente na circunscrição deste espaço.

Quando a apropriação da técnica produz uma determinada forma de viver, é a ordem da cultura que está em jogo. Afinal, segundo a definição de técnica com a qual trabalhamos, qual seja, a de instrumentos dos quais o homem se apropria para transcender a natureza uma vez que sua sobrevivência imediata está de certa forma garantida, a relação entre natureza e cultura não se reduz a uma mera oposição. Com efeito, é na relação com os objetos que nós mesmos somos produzidos – até o fim de nossos dias e além!

* Legenda do vídeo original no Youtube, inserida pelo próprio autor

ROUSSEAU, J-J. Ensaio sobre a origem das línguas. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2008.

SALAZAR, P-J. La voix au XVIIè siècle. In: FUMAROLI, M. (Org.). Histoire de la rhétorique dans l’Europe: 1450-1950. Paris: PUF, 1999. p.787-821.