O sujeito é tático pela língua, pelo corpo e pela voz

Como vimos, encarar a voz como objeto editorial implica significá-la como uma maneira de distribuir os fluxos dos textos e, para além disso, como uma maneira de transformar estes fluxos. Essa transformação exige a imposição de uma revisão nos valores dados aos fixos, ou seja, manipular os sistemas de objetos e sistemas de ações de forma que se construam novos valores que se estabelecem histórica e socialmente – portanto, discursivamente. Os avanços das teorias discursivas já aceitam a natureza tática dos sujeitos, que manobram em meio aos mecanismos de seu assujeitamento justamente através da apropriação de objetos técnicos. Em se tratando da voz humana, e a partir da perspectiva que percebe entre natureza e cultura uma relação que transcende a oposição, vislumbro a possibilidade de dizer que estas manobras não apenas abarcam a técnica, mas a própria natureza: o próprio corpo humano é um meio para a mobilização de estratégias que produzem sentidos e, portanto, subjetividades, constituindo, desta forma, um “objeto” que se prepara para a vida pública, intrinsecamente editorial.

Esta reflexão tem me acompanhado desde a escrita de minha dissertação, quando entrei em contato com a leitura de foneticistas brasileiros contemporâneos que, muito antes de mim, já se interessavam pela relação entre som e sentido. Muitos caminhos foram abertos para meu trabalho através desses materiais, e aqui pretendo dar especial atenção ao trabalho de Madureira (2016), que representa importantes avanços na investigação desta relação. Neste trabalho, ao investigar os efeitos de sentido derivados das mudanças de entoação da voz humana, a autora responde ao lugar de observação no qual a gestualidade vocal constitui um índice de características biológicas, psicológicas e sociais do falante. “A entoação é um sintoma da maneira como nos sentimos sobre o que falamos e quando falamos” (p. 63, grifo nosso), aponta, indicando que a chave de interpretação dos sentidos reside no grau de excitação do organismo. Por exemplo,

Os valores de frequência fundamentais variam dependendo do grau de tensão das pregas vocais e isso reflete na ativação (excitação) do organismo: quanto maior for a tensão, mais alta será a frequência fundamental e a ativação. As expressões vocais de emoções, que são caracterizadas por um organismo altamente ativado, como felicidade ou raiva intensa, exibem valores de frequências fundamentais mais altos, enquanto emoções que envolvem um organismo menos ativado, como tristeza e luto, exibem valores de frequência fundamental mais baixos. (MADUREIRA, 2016, p. 63, tradução nossa)

Podemos inferir, portanto, que, do lugar de observação em que se insere autora, os sentidos que emergem da voz, pelo menos no que diz respeito aos padrões entoacionais, são determinados diretamente pela condição anatômica e fisiológica do indivíduo falante. Creio que, nessa perspectiva, os efeitos de sentido se assentam sobre uma discursividade instalada sob a égide das ciências naturais, o que opera uma redução do tecido histórico em que sabemos se imbricar os processos de produção dos sentidos. Por essa razão, penso ser possível me valer desses dados à luz da teoria discursiva, operando uma inversão na perspectiva da fonologia estrutural, como a própria autora propunha em trabalho anterior (1996), de modo que se conceba um quadro teórico em que som e sentido figurem como mutuamente constitutivos. Assim, dialogando com esse posicionamento, venho tentando abrir caminhos para propor que se conceba justamente o sentido como constitutivo do som.

Ora, para tanto, faz-se necessário estender essa operação de inversão ao tratamento das relações entre corpo, emissão vocal e sentido: o sentido, portanto, condiciona o corpo. A problemática, em um elo dessa forma concebido, não se constitui ao redor de um sujeito psicológico e das configurações físicas de seu corpo que animariam os sentidos que, por sua vez, apenas adquiririam forma em seu exterior, como se o próprio corpo funcionasse às maneiras de uma maquinaria e à revelia de qualquer produção de subjetividade, mas ao redor da premência dos sentidos que se imporiam forçosamente aos limites e às possibilidades do corpo. Com efeito, aquilo a que Madureira se refere como “expressões vocais das emoções” não recai sobre a emissão da voz, mas sobre uma dimensão perceptiva que ainda não se pode fazer escuta, posto que não é concebida em sua relação constitutiva com os discursos; tudo se passa como se o corpo e a voz fossem instrumentos de uma subjetividade que se reduz a uma forma idealmente estabilizada e funcionassem em benefício de uma sua reprodução. Em uma perspectiva discursiva, o corpo deve ser considerado a partir de um quadro de funcionamento da relação forma-sentido em que se envolva como mais do que uma das partes que se dispõem de maneira ideal para estabelecer condições de interpretação no interior de determinada discursividade. Assoma-se, ao lado da percepção e da escuta, em um jogo dinâmico de reprodução e transformação, o potencial inovador da própria emissão. Diríamos, em outros termos, que a escuta se serve da memória como a voz serve ao acontecimento. Saber que o corpo impõe limites fisiológicos e anatômicos à gestualidade vocal importa menos que reconhecer que suas variadas possibilidades de articulação constituem uma condição de emergência de efeitos de sentido que, inserida no campo dinâmico da história, não apenas reproduz subjetividades, mas as transforma e as produz. Dessa forma, os mecanismos que articulam os sentidos em função do corpo se vêem imediatamente subordinados aos mecanismos que articulam o corpo em favor dos sentidos. Assim é que acredito poder atribuir às relações forma-sentido propostas por Madureira uma dimensão simbólica ativa. Essa inversão, que desloca o corpo e a voz para a fronteira iminente de um acontecimento, deve me permitir trabalhar de maneira mais produtiva com os postulados teóricos expostos e conciliá-los com um modo de proceder analítico que, como veremos no próximo post, busca apontar os caminhos para perceber a emissão vocal como um conjunto de possibilidades – bastante editável, diga-se de passagem – de reprodução, emergência e deslizamento de sentidos. Pois são, afinal, os discursos que atravessam as relações e práticas humanas que as dotam de sentido e invocam à materialidade a capacidade simbólica dos homens.

MADUREIRA, S. Intonation and variation: the multiplicity of forms and senses. Dialectologia. Special Issue, v. VI, p. 54-74, 2016.

MADUREIRA, S. A matéria fônica, os efeitos de sentido e os papéis do falante. Delta, vol. 12, n. 1, São Paulo, 1996, p. 87-93.