A arte e a vida

Já mencionamos, em algum momento, o ar pretensioso dessa personagem, expresso pela forma como se veste, pelo carro que tem e pela casa onde vive. Um sujeito certamente elegante – como dita a cartilha para alguém em uma posição de poder – mas também, em certa medida, hipster – como deve ser alguém inserido no mundo intelectual e da arte. Christian, como autoridade máxima do museu, deve representar um papel e seguir o “script”, orientando suas ações para aquilo que é esperado dele. Há uma cena, por exemplo, na qual ele está no banheiro treinando o discurso que irá fazer para apresentar para a alta sociedade que frequenta o museu a nova instalação e dizendo:

I’m sorry, this aII sounds very stiff. May I start over again? WouId that be okay? CooI. I’II Iose the notes… I don’t need them. Now off with these… Because the projectI’d Iike to teII you about…

Ensaiando, portanto, de que forma ele irá fingir uma certa expontaneidade que agradaria as pessoas endinheiradas que ali se encontram e que poderiam, no futuro, doar dinheiro para a aquisição de novas obras. Ora, logo no início, quando, na praça, uma mulher finge estar sendo agredida para roubar seu celular, percebemos como o simulacro está presente em todos os níveis da sociedade, conjuntura da qual não escapa o “mundo da arte”. Christian – como esteriótipo de uma alta sociedade interessada em arte – atua para poder manter seu papel hegemônico como diretor do museu. Seu sucesso depende do sucesso do museu e vice-versa, O espaço do museu vai, portanto, para além da arte, uma vez que sua capacidade de expor arte depende não só das obras que ali são exibidas, mas de dinheiro, publicidade e posições de poder. Em uma entrevista concedida a personagem de Elizabeth Moss no início do filme, ela pergunta: “what are the biggest challenges of running a museum like this?” Ao que ele responde:

I hate to say it, but it’s probably money. Raising its official funds. We’re a museum of modern and contemporary art and.. so we need to present art that is absolutely the art of today, the future, art that is absolutely cutting edge. And that’s expensive and the competition is fierce. Because you got buyers and collectors all over the world and thy have so much money you can’t believe it. They spend more in an afternoon they we spend in a year. But if we buy that piece of art we would be able to present it here, to a large audience, to all of Stockholm and Sweden.. So I think.. It’s actually an obligation from us to.. to… to get in to that competition and present art that is absolutely…

Os desafios, portanto, não são encontrar obras expressivas e de conteúdo, mas entrar no mercado e competir. A arte mais cara é a mais desejada. A arte a ser exibida é a de maior publicidade. Desta forma, o discurso se apresenta como prometéico, ou seja, se gasta quantidades obcenas de dinheiro com o alegado intuito de permitir o acesso do público a essas obras, entretanto, na essência, essa prática pode ser considerada faústica se pensarmos que se ingressa em disputas pelas obras de arte não pelo seu valor estético ou por aquilo que elas podem despertar nos seus espectadores, mas pela manutenção do poder. É a técnica do dinheiro e da informação que vão encabeçar as decisões. Frequentar o círculo fechado do museu, doar para o museu, ser diretor do museu: todas essas posições são privilegiadas – sendo, para elas, permitido até dar festas e se embebedar no interior do museu – e para que elas sejam mantidas é necessário que cada qual cumpra seu papel. Tal manutenção do poder não está somente ligada à ideia de que a arte funcione como distintivo de classe, mas principalmente por que ela é dependente do mercado: “Os mistérios da arte transmutam-se em segredos dos leilões, os preços das obras são comparados com o preço dos bônus, das ações e do Dow-Jones. ” (CANCLINI, 2012, p. 29)

Essa visão da arte, no filme, fica latente nos diálogos que se travam na construção da peça publicitária que irá divulgar The Square:

For every new project, we need to assess how newsworthy it is. What makes this exhibition stand out? Does it invoIve any controversy?

”The Square is a sanctuary of trust and caring. Within its boundaries, we aII share equaI rights and obIigations.”
No one wouId disagree with that. So why shouId I, as a journaIist, care?

A obra, por si só, não é matéria jornalística ou capaz de gerar engajamento. É necessário gerar polêmica, ingressar na sociedade do espetáculo, para que ela ganhe visibilidade e para que o museu lucre.

Um ótimo exemplo de como a posição de diretor lhe confere uma posição de poder é a relação que Christian estabelece com Elizabeth Moss, com a qual ele mantém relações sexuais após uma festa. Após gozar, ele se recusa a jogar a camisinha fora, temendo que Ann a use para engravidar dele, ao que ela responde: “You think very highly of yourself, no?” Ele nega, tentando manter as aparências, mas depois diz: “the second we are done you went straight to the condoms”. Mais tarde, ela procura ele, pois para ela não havia sido apenas uma noite de sexo e o questiona se o que ocorreu significou algo para ele. Aparentemente, ele faz isso com frequência e com muitas mulheres, por isso, Ann o acusa:

I think you’re interested in using your position, which is a position of power, to attract women and to make conquests. That’s what I think. Sorry.

Em certo ponto do diálogo, ele assume quando diz: “Why is it so hard to admit that power is a turn on?” e “I’m really proud that a conquered you.” Podemos classificar relações sexuais como faústicas? Se for possível, é esse o tipo de relações com as quais ele está acostumado. Da mesma forma que compra arte, conquista mulheres: como afirmação e manutenção do poder.

Outra questão interessante é o diálogo que se estabelece entre as obras do museu e a vida do protagonista. A obra principal, o “The Square”, por exemplo, é um espaço de confiança e cuidado dentro da qual todos têm deveres e obrigações iguais. Essa “civilidade” porém, parece só entrar em pauta ali no interior das discussões do museu e no papel que ele tem que representar socialmente. Em todas as outras esferas, ele é extremamente egocêntrico, desconfiado e violento. O contraste é explícito: uma obra cara, que basicamente fala sobre direitos e deveres humanos, instalada no interior de um museu que fica no antigo palácio real, frequentado e finaciado pela elite da Suécia, que aprecia essa obra e discute sobre ela, mas apenas superficialmente. Fora do museu, mantém as mesmas atitudes predatórias de sempre. Não à toa o filme é rechado com aparições de moradores de rua. A performance do homem macaco, por sua vez, encoraja os telespectadores a deixarem a fera atacar outra pessoa, a usarem um “bode expiatório”. O que mais seria essa fera, na vida de Christian, senão a opinião pública que o rechaça após o sensacionalismo da peça de publicidade que viralizou? O museu, e as pessoas ligadas a ele, sacrificam Christian na coletiva de imprensa, que é obrigado a “se demitir”. É sintomático que o resultado de não agir de acordo com o “script”, deixando sua vida ser tragada pela trama do roubo do celular, tenha como resultado sua exclusão daquele grupo seleto, uma vez que sua negligência impactou diretamente na imagem do museu. Diz ele na ocasião da coletiva de imprensa acerca da polêmica:

It’s my roIe to supervise aII our communications and marketing efforts. In this particuIar case, I did not fuIIy compIy with protocoI, and this video was pubIished without my knowIedge. I have acted irresponsibIy in this matter, and have therefore, in accord with our board, decided to step down.

Por fim, não posso deixar de mencionar o garoto acusado de roubar o celular de Christian. Além de toda a jornada pela recuperação do celular ser uma forma de exercício do poder, de imposição de sua vontade sobre os mais fracos, também é possível interpretar o menino como sendo uma rugosidade que interfere em todas as verticalidades da vida do protagonista, desorganizando-a. (Uso esses conceitos tendo como base Milton Santos) Apesar de todos os constrangimentos e problemas causados, sua relação com o menino – com um outro – foi essencial para que ele compreendesse de fato o que dizia a obra da artista Lola Arias, na frente da qual ele passava todos os dias indo ao trabalho: ele está numa posição de poder, na qual poderia ajudar muitas pessoas, mas não o faz. Muito pelo contrário. Ele nutre, assim como muitos que o rodeiam, desconfiança e preconceito pelas pessoas que estão socialmente abaixo dele. A seguir, transcrevo o monólogo feito por ele no vídeo de desculpas que pretendia enviar ao garoto:

You can probabIy see who this is. We just met on my stairweII. I tried to caII, but I couIdn’t get through. So now I’m making this video instead. Because you’re absoIuteIy right. I apoIogize for the rotten thing I did. I accused you of being a thief. PIease show this to your parents, so they’II know you are not a thief. The note said you stoIe my phone and my waIIet, but that wasn’t true. I want to emphasize that this is simpIy not true. So, I’d Iike to apoIogize. It was a bad thing to do. It was so seIfish of me. CareIess and prejudiced and I’m… Looking back, I shouId have gone into your buiIding, knocked on the doors and asked a simpIe question. But that never occurred to me, because… WeII, honestIy, I was too afraid. Afraid of the peopIe who Iive… Afraid of the peopIe I picture Iiving in a buiIding Iike yours. Those negative expectations say something about me. They say something about our society, because I’m sure I’m not the onIy one who’s prejudiced…You have preconceptions about us too, probabIy because our Iives are so different. So suddenIy, it comes down to poIitics and the distribution of assets.Because these probIems can’t be soIved by individuaIs aIone. Society needs to Iend a hand too. It’s not enough that I admit I was wrong and apoIogize to you in a video. There are bigger, structuraI probIems invoIved that society needs to deaI with. I actuaIIy know one of the 291 peopIe who own more than 50% of the worId’s weaIth. A guy Iike that couId fix aII this in an instant.

Em suma, espero que as discussões que propus aqui tenham sido suficientes para provar meu ponto. The Square foi capaz de tematizar as formas como a arte e a vida estão interligadas, incluindo-se, nesse amálgama, as relações de poder, as formas de mantê-lo, a crítica à arte contemporânea e a crítica a hipocrisia da alta sociedade que a financia.