Artigo 13

Em algumas postagens anteriores, ao refletir sobre possíveis efeitos que os usos da web 2.0 tem ocasionado nos modos de inscrição e circulação literárias, discutimos sobre as práticas de produção baseadas na reciclagem cultural. Tais práticas têm como fundamento os “deslocamentos espaciais e temporais de objetos estético-culturais, abarcando um processo que consiste em várias fases de um objeto que comporta ao mesmo tempo repetição e transformação” (KLUSCINSCAS e MOSER, 2007). Como observamos, a reciclagem pode demonstrar certa instabilidade em relação a algumas categorias de análise do texto literário, que vieram sendo desenvolvidas pela teoria da literatura para textos publicados de modo impresso, mais especificamente, no formato de códice. Podemos apontar o entendimento da noção de autor como exemplo de uma dessas categorias cujo terreno tem sido sacudido pelas tecnologias digitais

De acordo com a professora Luciene Azevedo (2017), o deslocamento do autor enquanto gênio criador e origem para aquele que pratica os gestos de isolar, coletar, copiar, curar e reciclar reconfigura a própria noção de originalidade artística, um elemento tão caro aos Estudos Literários quando o assunto são os métodos de valoração de determinada obra e autor. Nessa perspectiva, estaríamos diante de um novo paradigma de criação literária, no qual os procedimentos recicladores “tomam lugar e impõem-se como uma dominante” (KLUSCINSCAS e MOSER, 2007).

Frente a isso, parece-nos importante estar atentos aos modos como são analisados os procedimentos recicladores no âmbito jurídico. Isto é, nossas legislações atuais amparam legalmente os autores que faz uso de tais procedimentos? Sobre o assunto, recentemente, há uma proposta de lei de direitos autorais que tem gerado repercussão, trata-se da construção e aprovação do Artigo 13 na Europa.

Divulgada inicialmente como Artigo 13, a proposta da nova legislação delineia novas regras para produtores de conteúdo da internet na medida em que condena, por exemplo, produções que retomam/convidam obras e conteúdos de autoria de terceiros em sua composição. Para os legisladores, as novas legislações viabilizariam uma maior proteção dos direitos dos autores. No entanto, desde a votação e aprovação da nova lei, tem ocorrido petições online (com milhares de assinaturas), manifestações em países da Europa contra as novas diretrizes de direitos autorais, que parecem entender as práticas recicladoras de maneira pejorativa e degradante, sob a ótica do plágio. No Brasil, youtubers produziram vídeos, alguns por sugestão da própria plataforma Youtube, se posicionando contra o Artigo 13.

Em entrevista, o professor e sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira trata da nova proposta de lei em questão. Organizador do livro Sociedade de controle – manipulação e modulação nas redes digitais (2019), Sérgio Amadeu se posiciona contrário à aprovação do Artigo 13 que, segundo ele, pode vir a limitar as discussões e as produções artísticas em meio digital. Ademais, para o professor critica a nova legislação que é entendida por ele em termos de destruição da criatividade e limitada ao que Amadeu chama de indústria do copyright.

Entrevista com Sérgio Amadeu da Silveira concedida ao canal HedFlow, no Youtube

Nas palavras do professor: o artigo 13 se trata de um bloqueio completo de compartilhamento de conhecimento de produtos e de bens culturais, […] indo na contramão do que é o digital – que se baseia na cópia – contramão do que é possível fazer hoje em benefício da cultura.

Essas considerações suscitaram algumas questões, a primeira delas diz respeito aos impactos que a lei poderia causar no Brasil. Ou seja, de que modo a legislação proposta na Europa pode afetar as produções artísticas brasileiras? Além das produções, o olhar crítico para a reciclagem seria afetado? Em outras palavras, a perspectiva como se analisa e valora os procedimentos recicladores nas artes serão ressignificados? A título de exemplo, a obra digital que discutimos em postagens anteriores, Amor de Clarice – de Rui Torres seria inviabilizada por se trata de uma produção cuja matéria verbal é uma reconfiguração do texto clariciano?

As interrogações não têm aqui respostas já delimitadas, tratam-se mais de hipóteses iniciais levantadas, enquanto as mudanças estão em curso…