Daniel

Mapas

Meu objetivo inicial é observar e refletir acerca de mapas de diferentes épocas e localidades, partindo da hipótese de
que eles podem funcionar como indicativos de poder colonial.

O mapa é um desenho estático, a cartografia é constitutiva e constituinte em relação à paisagem, ela acompanha seus movimentos. É uma ação antropofágica, já que devora toda linguagem que afeta as paisagens psicossociais que lhe são contemporâneas. As marcas de cada um dos elementos
que constituem uma cartografia, aqueles que foram por ela devorados, são indícios que nos denunciam os acontecimentos que a afetaram acrescentando direções, expandindo e metamorfoseando as formas de concepção do mundo.

A paideia grega, sua pedagogia, tinha como ponto de partida uma viagem, a viagem de Odisseu (ou Ulisses). A Odisseia de Homero é a viagem que molda o saber ocidental a partir de um mapa, a criança grega que aprende a geografia das múltiplas Grécias pré-estatais também apreende sua história: as terras atravessadas por determinados povos são, a navegação, os acontecimentos.
A navegação demanda um “norte”. Mas por que chamamos a orientação de “norte”? Pelo norte na bússola? Mas e a viagem guiada pelas estrelas?
De qualquer forma, para navegar, para tomar as linhas de fuga, para abandonar as linhas duras que nos aparecem prontas, precisamos saber como construir nosso proprio paideuma. O Norte fica em cima? O sul fica embaixo? Quem ocupa o centro do mundo? O sofista – o nômade – que viaja sabe que o mundo não tem centro ou periferia.

o mapa e a técnica

Quando um território é mapeado, ele é encerrado em uma visão de mundo, uma cultura, uma época é trancafiada na representação que se confunde com os estados de coisas: confunde-se o mundo com a linguagem dos mapas, porque o mundo conhecido passa a ser aquilo que o cartógrafo representa sobre ele. Em decorrência disso, as descontinuidades são todas sufocadas, escondidas, esquecidas, para que um outro tipo de cartógrafo, o cartógrafo psicossocial, as resgate no futuro.

Pouco mais de dois mil anos atrás, entre o que hoje chamamos de “Turquia” e o que chamamos de “mediterrâneo”, um acontecimento técnico, uma invenção atravessou Anaximandro de Mileto e se manifestou sobre o nome de “topologia”, “topoi”: os lugares; “logia”: um conjunto de técnicas, “discurso rigoroso”, criado a partir do “logos”. Isso significa que a dupla relação de a sobre b é igual a c sobre d, essa fórmula resume o que os antigos gregos chamavam de “analogia” (2/4 = 8/16), daí vem a teoria dos números, nascida em Samos. Em Mileto, “lado oposto do mundo”, pensaram que a proporção entre um e outro lado é igual a proporção entre um lado x e um lado y. Em Efeso nasceu a física, as tentativas de domar o tempo, o espaço e as causas “naturais”.

Em Mileto, em Samos, em Efeso, um mundo todo recluso em um espaço que hoje chamamos “pequeno”, facilmente percorrido em poucas horas, o logos deu à luz as relações que regem o mundo ocidental. Nesse período, o mar mediterrâneo cortava o mundo, que se quebrava em dois grandes cacos, o rio Oceano cercava e dividia o pequeno mundo circular de Anaximandro.

o mapa de Anaximandro

Odisseu se perdeu na volta para Ítaca, circulou todo o mundo, do litoral turco ao mediterrâneo, enfrentou os oito ventos que o circundava e o controlava de maneira tirânica, se deparou com povos estranhos, com monstros gigantes e feiticeiras, levou décadas para cruzar seu pequeno mundo. A técnica da navegação, a técnica da batalha pelo domínio das armas, a técnica da topografia, entre outras, se explicitam na mitologia mapeada do mundo nos poemas homéricos no século IX a. C.

Mas Odisseu é o explorador mitológico, é a criação subjetiva de nosso WASP contemporâneo. Cinco séculos depois do mapeador homérico, um outro cartógrafo surgiu: Pytheas de Marselha, grego da Fócida. Ele, a partir de novas técnicas, acrescentadas à Paideia e a viagem de Odisseu, “alargou” o mundo, “empurrou” suas fronteiras circulares para cantos mais distintos, testemunhou a aurora boreal nas proximidades do nosso atual polo norte, chegou a ilha de Thule, que hoje chamamos de Escócia, onde as marés são violentamente influenciadas pela proximidade da lua. O comprimento dos dias se torna relativo segundo a matemática de Pytheas: quanto mais a norte a nau avança no verão, menor é o número de voltas na ampulheta entre o pôr e o nascer do sol.

o espaço navegado por Pytheas de Marselha

Não podemos esquecer, porém, que essa é a narrativa grega e que séculos antes, os topógrafos do faraó mediam as terras devoradas pelas cheias do Nilo para a dedução de impostos por parte dos agricultores. No entanto, esse tipo de medição da terra, de delimitação do mundo, ainda não pode ser chamada de “ciência”, porque trata-se de um conjunto de conhecimentos reunidos a partir daquilo que pode ser observado e aplicado na resolução dos problemas práticos, ao passo que a ciência buscaria mais tarde dominar a natureza de maneira que esse domínio seja útil para facilitar a vida do homem.      

A cartografia da colonização

Deus como aranha, Deus como espírito –
é um dos mais corruptos conceitos de Deus
que sobre a Terra se obtiveram: representa até,
possivelmente, o mais baixo nível da evolução
declinante do tipo divino. Deus degenerado
em contradição com a vida
(NIETZSCHE)

No ano de 334 a.C. foi construída a Via Latina, uma grande estrada que cortava o sul do Lácio, ligando Roma a Cales. A partir daí a malha do Império se estendia como o sistema vascular da pax romana. Omnes viae Romam ducunt.

mapa peutingeriano do delta do Nilo

O fluxo construído não era só cimento, era também fluxo de signos, de ideias e de sangue irrigando o organismo do império. Os receptores sensíveis, a nervura orgânica do território construía a inosfera que interconectava umas às outras as diferenças, costurando-as à força, com linha e agulha feitas do puro vazio.

E então veio a língua romana, para forjar a simulação da origem e a mentira de um fundamento comum, a partir da entropia. A diáspora da língua é a diáspora da mercadoria, da água esterelizada pelo Aqua Appia, pelo Anio, pelo Tibre. A desterritorialização geral é autoritária, porque tem centro e periferia, porque realiza em dimensões distintas a ilusão da origem, se expande pelo medo, impõe e predispõe o desejo do medo, infecciona o todo com uma inflação descontrolada, seus signos não mais interpretáveis, são interiorizações automáticas.

 A grande aranha peutingeriana estendia suas pernas gigantes por toda extensão bio-maquínica do “mundo” conhecido. As fronteiras se estendiam conforme as pernas da aranha dos césares cresciam. Roma aspirava um mundo “sem fronteiras”. Mas, em que sentido? No da pax americana? Otan? Roma?

Roma peutingeriana

Projeção Mercator: o povo centralizado e a multidão nômade

Arquimedes, pensador de Siracusa, foi uma das grandes figuras da resistência ao império romano. Suas máquinas de guerra eram a confirmação epistemológica da infecção de uma ciência nômade, povoando o estéril da mega-máquica estatal. Sua geometria diz aos outros nômades que a área de uma superfície esférica é exatamente dois terços da área da superfície total do cilindro circular reto circunscrito a ela e que o volume da esfera é exatamente dois terços do volume do mesmo cilindro. Mas o que isso significa? Ora, trata-se da fluidez das formas, da anti-natureza resiste ao imperador, mostrando que esfera se metamorfoseia em cilindro. É metamorfose. Mas, a metamorfose custa caro, “Sabe-se de que modo, com Arquimedes, terminou a era da jovem geometria como livre pesquisa criadora. (…) A espada de um soldado romano cortou-lhe o fio, diz a tradição. Matando a criação geométrica, o Estado romano iria construir o imperialismo geométrico do Ocidente” (Virilio, L’insécurité du territoire, p. 120).

Naqueles tempos, o poder ainda não sabia se apropriar dos saberes que o desafiava, o poder ainda era menino. Foi pouco mais de 1300 anos mais tarde, no século XVI, que a transformação de Arquimedes foi raptada pelo poder, o círculo virou cilindro e o planeta terra foi trancafiado na projeção Mercator. 

a Projeção Mercator

No mesmo século XVI as Américas foram encontradas por aqueles monoteístas piedosos, compassivos e civilizados, que cobriam devidamente seu corpo desbotado. Até o século XVII, 250.000.000 de mortos no “novo mundo”. Na projeção feita para representar a nova configuração global, a Inglaterra de Hobbes (sec. XVII) ocupava o centro do mundo, bem distante de “onde habitam os selvagens primitivos” (Hobbes, De cive, XII, 8). O centro do mundo, o centro de uma esfera? O centro de um cilindro? Como encontrar seu sul? E seu norte? Essa é a natureza de Hobbes, de seu deus infinitamente sábio, que sabia que os selvagens das periferias do mundo, a multidão sem lei e sem rei “constitui um grande perigo para o governo civil, em especial o monárquico”, sendo assim, “que não se faça suficiente distinção entre o que é um povo e o que é uma multidão. O povo é uno, tendo uma só vontade, e a ele pode atribuir-se uma ação; mas nada disso se pode dizer de uma multidão” (Hobbes. De cive, XII, 8). Agora havia quem temer, o deus cristão não podia e nunca pode com a potência da multidão.

A multidão é a multiplicidade, a potência de transformação que só se encontra na singularidade, na diferença, na autonomia, do devir. Um enxame de abelhas não tem uma cabeça que possa ser cortada, não se desmancha com as baixas, seu corpo é a realização viva da fluidez.

Seis séculos se passaram desde a idealização da projeção Mercator, as periferias e o centro ainda têm seu lugar marcado estático, a multidão ainda é alvo do processo civilizatório.

o mundo e a mitologia do olhar

A deusa grega Íris costumava deixar um rastro no céu, com inúmeras cores para deixar aos homens as mensagens dos deuses: o arco-íris. Para os judeus, trata-se do arco da aliança que, após o grande dilúvio simbolizava o novo pacto entre YHWH e os sobreviventes. Já para os franceses do século XVII, o que ocorria era que os raios solares eram refratados e refletiam nas pequenas gotas de chuva ainda suspensas na atmosfera (DESCARTES, 1637). Por outro lado, para alguns povos ameríndios “a cobra arco-íris, na origem do veneno de pesca e das epidemias, devido ao caráter maléfico que o pensamento indígena atribui ao cromatismo, tomado no sentido de reino dos pequenos intervalos. Por efeito de uma simples variação de afastamento entre seus termos, este reino gera um outro: o dos grandes intervalos” (LEVI STRAUSS, Mit. 2, p. 267).

“O homem sempre olhou para esse tipo de fenômeno e atribui diferentes explicações a ele”, é isso que um livro introdutório de ótica, por exemplo, diria. Mas quem é esse “homem”? Em quais condições ele observa o céu após a chuva? É o mesmo fenômeno em diferentes épocas e regiões do mundo? E a questão mais importante para mim neste momento: por que adotamos um único ponto de vista como universal e verdadeiro? Será que os múltiplos pontos de vista sobre as múltiplas explicações acerca do mundo em que vivemos são adotados a partir de um ponto espacial sempre convergente? A Europa do século XVII parece ter universalizado as visões de mundo. O “cidadão de bem”, “reto” e “íntegro” é cristão ou segue a religião Olmeca? O que ele veste de manhã para ir para seu trabalho? Enfim, como temos visto, com a cartografia é a mesma coisa, os povos adotam seu ponto de vista e o centro do mundo converge com a concentração dos saberes. Concentração essa obviamente determinadas pelas relações de poder vigentes.

Vamos ver algumas diferentes perspectivas.

Os chineses já estiveram mais próximos do centro do mundo:

mapa da dinastia Manchu, 1644.

Nessa ocasião os manchus, povo nômade do extremo norte asiático, haviam derrotado a partir de uma série de batalhas a dinastia Ming e sua pretensão, realizada, era estender seu império até a Ásia central.

O mapa-mundi chileno publicado em 2007 procura questionar o caráter colonialista da representação canônica dos ingleses:

mapa do governo chileno, 2007

O governo de Michelle Bachelet (PSC – Partido Socialista Chileno) apresentava um programa mais à esquerda, relativamente progressista, sendo a primeira mulher eleita como presidente nas Américas.  

Em 1954, Fuller desenvolveu uma projeção icosaédrica, chamada “Dymaxion”, a partir de 20 faces, 30 arestas e 12 vértices:

projeção Fuller
projeção Fuller

Enfim, olhar para o mundo pode ser uma questão ética, uma resistência em relação a colonização do pensamento que produz subjetividades obedientes e domesticadas.

a cor do norte e as cores do sul

Em 1451, a escravização dos povos do Congo teve início. No ano do nascimento de Colombo, os povos capturados foram traficados para o Império Europeu, não havia América. Se o poder necessita de corpos para se manifestar, é, a partir daí, que os corpos africanos serão por ele marcados. A lenda da divisão norte/sul é a lenda da superioridade racial, do nascimento de uma episteme racista, epigeneticista: a lenda do capitalismo. Que nome o cristão, tão compassivo e piedoso, dava àqueles animais capturados?

Quarenta e um anos depois, no dia 12 de outubro de 1492, Colombo chega ao lugar que hoje chamamos de “Bahamas”, financiado pelos “reis católicos” (Isabel de Castela e Fernando II de Aragão, que naquele mesmo ano, em 2 de janeiro, haviam concluído sua campanha sangrenta de expulsão dos muçulmanos de Granada, expandido seu reino e enchendo seus bolsos com sangue). Começa aí a escravização dos corpos vermelhos, além de seu etnocídio de 563.000.000 de mortos, em nome de cristo: o salvador. Cristo (o herói passivo, triste e coitado inventado por Paulo de Tarso para neutralizar o poder dos inimigos do Império Romano) tinha tifo, sarampo, gripe, peste bubônica, febre amarela, papeira, tosse convulsiva e, é claro, a espada: cristo era o deus podre e purulento da morte.  

Então, comércio atlântico de escravizados passou a realizar seu intercambio macabro entre os povos do sul. Os escravizados partiam do continente africano para as Américas, mais sangue e mais prata nos bolsos enormes de Jesus.

mapa do comércio atlântico de escravizados entre 1451 e 1600

   No século XVIII, o século da “igualdade, liberdade e fraternidade”, intensifica-se o tráfico de africanos para a América britânica, ou melhor, a “British North America”, que recebeu cerca de 6.000.000 de escravizados que sobreviveram a travessia. A fraternidade entre os homens, assim como sua liberdade e sua igualdade pregada pelos valores europeus deixa claro quem é e quem não é digno de pertencer à sua categoria de “humanidade”.

mapa do comércio atlântico de escravizados entre 1701 e 1810

No século XXI, os E.U.A, ou será a “British North America”? Enfim… a “terra da liberdade”, mantém mais negros em cárcere do que negros escravizados nos séculos anteriores. 70% dos moradores de rua dos E.U.A são negros.

Quanto aos indígenas, o maior holocausto da história da humanidade ainda é negado pelos cristãos do norte que, ano a ano, seguem sugando as riquezas do sul global, cobrando sua dívida financeira.

O meridiano zero, as horas, e o eterno retorno (da diferença)

A projeção Mercator marca um meridiano zero, em Greenwich, no lado leste de Londres, onde nasceu Elisabete I (ou Isabel, como preferir). Foi durante o reinado dessa mesma rainha, que as forças militares inglesas investiram pesado na colonização, Francis Drake circumnavegaria o mundo com ajuda do mapa de Mercator, e a ilha de Elisabete, se tornaria a maior potência assassina dos séculos subsequentes.

O observatório dessa mesma Greenwich, é o “centro do mundo” ainda hoje, lembro-me de ter aprendido isso na escola, quando pequeno (pois é… defender a hegemonia do império anglo-saxão parece ser a tarefa favorita desses malvados doutrinadores marxistas que invadiram as escolas…). A forma geóide do planeta terra opera sobre seu próprio eixo uma volta completa num espaço de? 24 horas? Não, na verdade de 23 horas e 54 minutos, mas tudo bem… Vamos descomplicar, no espaço de 24 horas. Isso dá um deslocamento de 15 graus (ou 1667 km) por hora, no “sentido horário”, portanto, a cada 15 graus à Leste de Londres, isto é, à ocidente, acrescenta-se 1 fuso, a cada 15 graus à oeste se dá exatamente o contrário, subtrai-se 1 fuso a cada 15 graus.

Ora, mas isso é ciência, não é? Não há nada de político aí, não é? Aí depende do que você considera como referência, se a referência do corpo domesticado é a norma, como vivia insistindo por aí um tal Michel Foucault, nada mais normalizador que a colonização temporal do relógio e nada mais normativo que aplaudir a hegemonia anglo-saxão e respeitá-la como referência!

A padronização do tempo era, no século XIX, uma demanda urgente nas estratégias militares. O império britânico venceu a batalha. Em 1884 em uma conferência, realizada em Washington, nos EUA, foi decidido que o tempo universal coordenado se guiaria por Greenwich, a partir dalí os cem fusos horários seriam regulados.

Mas para quem servem as horas? A pressa é a marca do poder na domesticação do corpo no interior do tempo: percorrer o espaço para chegar, não para curtir o espaço se deslocando abaixo de nós. A hora é inimiga do devir, ela serve aos “cidadãos de bem” que correm para alcançar a benção de seu próprio desespero. A marcação do tempo é a marca do império nos corpos automatizados, dos corpos em produção.

Mas o que é o tempo? O tempo é a divisão anglo-saxã dos meridianos na projeção Mercator? De Heráclito a Nietzsche o tempo é aquilo que nos mostra que a eternidade não pode se inserir na metafísica, é preciso viver o agora, o sempre agora, o sempre-já-agora. Nietzsche coloca a questão: “Você viveria sua vida mais uma vez e outra, e assim eternamente?”, se sua resposta é não, repensemos nossa forma de usar o tempo.  Eu sempre estive aqui amanhã para sentir e tempo e não para aguentá-lo, não para doá-lo ao imperador, nem para “mata-lo”, porque meu relógio é a vida.

Oriente e Ocidente, Leste e Oeste

Em uma belíssima passagem de seu livro Caminhado, Thoreau nos diz: “vamos para o Leste quando se trata de compreender a história, estudar a arte e a literatura, rastreando os vestígios do passado (…) vamos para o Oeste como que para o futuro”. Esse é o caminho do nômade: o Oeste, onde o sol nasce. Esse mesmo sol que já se pôs, no passado, no Leste, ali onde está a cultura e a memória carregadas de ressentimento, de verdades, de dívidas…

Quem está no centro do mapa, nem a Leste, nem a Oeste, é quem se autodetermina detentor do tempo, ele está no controle do passado e do futuro, e por isso é que o poder desconhece o presente.

Nada disso significa que os impérios europeus que ocupam esse “centro” é parte de um grupo que exerce poder sobre outro grupo, outros povos, etc, não se trata de uma relação entre detentores e submetidos, mas de um poder que constitui indivíduos que creem em uma imagem de mundo e os atravessa, passa por ali, toma corpo, de forma capilar, justamente nas “periferias” que ele mesmo criou, em cada localidade, em cada região, como efeitos reais de si mesmo.  A questão aqui foi: qual foi a “máquina” que produziu tal acontecimento? Pois sugerir uma dominação de um grupo sobre outros equivale a sugerir algum tipo de superioridade étnica, e não “simplesmente” geográfica, é muito mais uma questão de trapaça, de necessidades pautadas na falta, na carência… enfim, quem detém esse tipo de poder está fraco, sedentário, só olha à Leste, nunca à Oeste.

A Leste, o império sumeriano, a terra YHWH, o império Manchu, a rota de Marco Polo, a viagem de Ulisses (o Adão dos WASPs), a ekklesia,  a ágora, a acrópole, os bolsos vazando sangue, a colonização do subcontinente indiano, o império otomano civilizadamente britânico… a história, a dívida, dinari, denário, prata, ouro… a dokimasia. A Oeste o caos, “é preciso ter o caos dentro de si para dar à luz a estrela fulgurante” dizia Zaratustra. No centro, o medo do caos, para os medrosos, é preciso domesticar o caos, é preciso matar sua intensidade, é preciso ORIENTÁ-LO.

Correr junto ao Sol, em direção ao novo – máquina de guerra deslizando sobre o espaço liso – é devir, se integrar ao eterno retorno, entender-se parte da natureza, não enquanto sensação, mas enquanto corpo em conjunção com outros corpos, matar a serpente que te sufoca e te prende apertando os ossos, é a alegria do trágico!

A rosa dos ventos é a flor podre da morte e da estagnação, ela enfeita o túmulo do animal e marca o triste nascimento do “homem”.

o mapa e o decalque

“Nós opomos a epidemia à filiação,
o contágio à hereditariedade, o
povoamento por contágio à reprodução
sexuada, à produção sexual…
As participações e núpcias
contra-natureza são a verdadeira Natureza
que atravessa todos os reinos da natureza”
(Deleuze e Guattari)

O mapa:

O decalque:

O mapa rizomático e o decalque arborescente. O mapa é (po)ético e o decalque político. A totalização dos mapas é constante, eles sempre são domesticados, organizados pelos decalques. O mapa sempre foge do 1, mas o decalque, sempre redundante, o captura e o unifica. O mapa logo em seguida re-anarquisa o decalque, como uma árvore que vai se contorcendo, se retorcendo, sob a força indomável da matéria que se recusa a ser formada. O decalque é redundante porque é a representação do mapa, o problema é que ele (o decalque) reproduz “sempre seus impasses, bloqueios, germes de enraizamento pivotante ou pontos de estruturação” (Deleuze e Guattari), por isso é que essa reprodução do real é a negação da realidade: ela fecha o mapa no 1. Aí somente a negação é real, a luz deixa de criar o olho e o olho (único) passa a criar a imagem fria da luz.

Os territórios físicos se alastram assimétricos, se curvam e se dobram com as forças revoltas das águas e dos ventos, mas seu decalque é estático. Os territórios se misturam, as brancas montanhas suíças são constantemente tingidas de vermelho quando o siroco atira sob a neve milhares e milhares de toneladas das areias do Saara. O siroco, o vento que vem do sul, despreza a higiene estéril dos homens do norte. A migração do fluxo gênico de pólen permite que as vegetações voem nos ventos e germinem depois de sua longa viagem continental. Os nômades migram. Os pássaros acompanham os devires das estações. Nada no mapa é estático.

Para que a luz volte a criar os múltiplos olhos, nas múltiplas condições de criação, para que o uno vire múltiplo, para um monismo pluralista, isto é, uma multidão de olhares, é preciso devir, migrar, miscigenar, acompanhar o que há de erótico nos fluxos, porque tudo no mapa é fluxo, nada no mundo é sólido, “todas as coisas são uma troca do fogo, e o fogo, uma troca de todas as coisas, assim como o ouro é uma troca de todas as mercadorias e todas as mercadorias são uma troca do ouro” (Heráclito).   

O monstro no mapa

“O anfitrião, preocupado apenas em transmitir
sua alegria a quem viesse, à noite,
comer à sua mesa e repousar sob seu teto
do cansaço da estrada, espera ansiosamente,
à soleira da porta de sua casa,
o estrangeiro que ele vê
despontar no horizonte como um libertador.
E assim que o avista a distância,
o anfitrião trata de exclamar:
‘Entre depressa, pois tenho medo da minha felicidade.”
Klossowski

Nos “mares nunca dantes navegados”, nas ilhas e terras selvagens onde o sol descansa da monótona e automática rotação há monstros. O Calibã – protótipo do latino-americano derrotado pela virtude do herói europeu; o Ciclope engenhosamente ludibriado por Odisseu; o gigante Adamastor que figura não somente nos Lusiadas de Camões, mas também na Gaia de Sidonio Apolinário, em Gargantua de Rabelais e nas Profecias de Adamastor de Bocage.

O monstro é a alteridade, é a materialização da dissolução do eu. Se o monstro é aquele que hospedará o “explorador” em terras e mares desconhecidos, como pode esse “explorador” confiar seu destino a um monstro? Se eu acreditasse na etimologia, diria que o hospede e o hostil são o mesmo ser (o estrangeiro e o inimigo), diria ainda que “território” é igual a “terra” e “terror”.

 ”Meu” território, a infecção do “outro”, o contágio, a perda da identidade, o dente afiado dos antropófagos. É o alienígena que come o corpo do invasor? Ele devora o cristianismo e vomita de volta ritos pagãos ainda não domesticados? Os povos que caçam, caçam porque têm fome!

Medo do estrangeiro, o medo da alteridade, o medo do novo: o medo do acontecimento. Os colonizadores temem o acontecimento, porque temem o inesperado, porque temem a negação confirmada de seus valores metafísicos, porque temem a afirmação das coisas de carne que compõem a vida, porque são homens de Estado, porque foram amansados e domesticados, porque são impotentes, porque têm o dever de serem bons cristãos, bons assassinos, bons acumuladores de terras, de ouro, de prata, de escravizados, de seguidores no instagram. É o medo da diferença.

É o apego ao igual, o apego ao estável, o apego ao previsível, ao sentido, ao explicado, ao seguro.   

Descobrir o monstro, tirar o véu que o recobre, retirar-lhe o efeito de verdade é encarar o selvagem no espelho, perceber a imagem e semelhança do deus cristão envolto em pele vermelha, negra, amarela (o “malus”, do latim, “homem da pele escura”, o “mau”) e isso é inaceitável. A abjeção do eu equivale a percepção da reciprocidade nua, em carne crua, em carne viva, mas para vida fraca a vida da carne é insuportável.

o mapa e o dinheiro

Nietzsche costumava dizer que “é preciso proteger os fortes dos fracos”. A frase do homem de bigode é, constantemente, mal interpretada pelos herdeiros mais confusos do homem de barba (aqueles que ainda não perceberam os dois podem ser ótimos aliados). Quem são os fracos? Quem são os fortes? Os fracos não são os territórios de pouca tinta no “mapa” decalcado acima, nem as pessoas com “sangue de pouca tinta” que neles habitam (para usar a expressão do fortíssimo João Cabral). Os fracos são aqueles que detêm o poder, porque eles precisam do poder, enquanto os fortes não necessitam da exploração alheia para sobreviver. O fraco subjuga e o forte sorri, dança no interior da batalha, cria novos modos de existência.

Inclusive, são “de dar dó” as catalogações do poder decalcadas no “mapa” acima. Na Suíça, segundo colocada na representação, mais de 350 mil pessoas vivem com uma renda per capta equivalente a menos de R$ 77 por mês, enquanto o PIB per capta de Fortaleza CE, passa de 22 mil. Na cidade de Camden, no leste dos EUA, 35% da população vivem abaixo da linha de pobreza… Enfim, as coisas nunca são tao simples.

Por que é preciso proteger os fortes dos fracos? Repare que as cores mais escuras do mapa estão na Europa e na América do Norte, pois bem, as relações econômicas entre Norte e Sul são parasitárias e o parasita é o Norte. Em tempos de recessão econômica, há um movimento oscilatório que concentra a riqueza em um dos polos, a necessidade de adequação da produção à saturação do mercado ocorrida nas últimas décadas fez com que a produtividade do Sul aumentasse sem que fossem alteradas as quantidades produzidas, gerando maior lucro para os importadores e menor remuneração aos produtores. Além disso, a dívida dos países emergentes e em desenvolvimento em relação a seu PIB junto ao FMI é a principal maneira de se retirar dinheiro dos territórios que apresentam as cores mais desbotadas no mapa decalcado acima, para que esses sigam “carregando” os mais “ricos” em suas costas (para isso é preciso muita força). Segundo projeções do próprio FMI, o Brasil, por exemplo, tem, atualmente, uma dívida bruta que representa 90,5% de seu PIB.

Como o mapa entra nisso? ele é só um objeto que “retrata” a situação… Na verdade não, o mapa é um enunciado performativo, ele não informa, ele sugere e impõe, como eu já disse em outros momentos, pois o ponto de vista não constrói o objeto, ele constrói o sujeito!

Por isso, cada vez mais, é preciso proteger os fortes dos fracos.