LITERATURA DIGITAL

Flávio Vilela Komatsu, mestrando do PPGLIT

Descrevo aqui meus três objetos de pesquisa – As doze cores do vermelho, De onde vieram os homens com quem dormi e OWNED – Um novo jogador aqui compreendidos como literatura digital pelo modo como se inscrevem e exploram as potencialidades do meio digital. Foram selecionados devido à diversidade quanto ao uso do hipertexto na construção de suas respectivas narrativas, e coloco os três aqui por acreditar que cada um deles se mostrará mais oportuno em um dado momento da disciplina.

As Doze Cores do Vermelho

As doze cores do vermelho, por exemplo, é uma página em html básica, acessível por meio de qualquer convencional navegador de internet. Apresentada como a “versão online do romance de Helena Parente Cunha”, tratando-se, portanto, da remidiação[ de um romance impresso. Os responsáveis pelo objeto são Eduardo Loureiro Jr., Sabrina Custódio e Andréa Havt (nomeados no rodapé da página segundo suas funções técnicas). Curiosamente, a autoria desse objeto ainda é atribuída à autora do romance impresso, Helena Parente Cunha – escritora e professora titular de Teoria da Literatura (UFRJ) – único nome cuja menção é digna de link para uma biografia.

Constam ainda, na página de entrada, um hiperlink para a narrativa de fato e uma sinopse que, além da “estória”, introduz instruções sobre a mecânica da narrativa:

As Doze Cores do Vermelho: página de entrada

A narrativa de As doze cores do vermelho se divide em três “ângulos”, representando uma temporalidade (passado, presente e futuro) e uma voz (eu, você e ela) distintas em cada um. Cada ângulo contém 43 “módulos”, cuja enumeração ordena a linearidade dentro de cada ângulo. Os módulos também são intitulados, constando o mesmo título para módulos de diferentes ângulos, mas com mesma enumeração. Cada módulo é um fragmento de texto independente dentro da estrutura, relacionando-se um com os outros por meios dos vínculos estabelecidos pelos hiperlinks.

O hiperlink de entrada (na porta da figura acima) tem uma fórmula de aleatoriedade em seu código, levando a iniciar a narrativa por qualquer um dos módulos existentes. Em cada módulo haverá quatro hiperlinks em forma de setas cercando o texto em cada direção – para cima, para baixo, para esquerda e para a direita (figura abaixo). 

As Doze Cores do Vermelho – visão de um dos módulos da narrativa

Para cima você volta um módulo dentro de um mesmo ângulo: se você estiver, por exemplo, no módulo 30 do ângulo 2, irá para o módulo 29 do ângulo 2. Para baixo, ao contrário, você avança um módulo, indo para o 31 do mesmo ângulo. Para a direita, você avança um ângulo, indo para módulo 30 do ângulo 3; e para esquerda, da mesma maneira, você recua um ângulo. A enumeração funciona de maneira cíclica: avançar, estando no último módulo ou ângulo, significa retornar ao primeiro. Cada módulo ainda conta com um hiperlink no canto superior direito que tornará a lançar o interator (termo sugerido pela pesquisadora Janet Murray para esse novo leitor) a um módulo aleatório. Ou seja, a navegação nos localiza dentro do tempo da narrativa, permitindo – por meio da hipertextualidade – avançar, voltar ou dar saltos entre uma temporalidade e outra.

De onde vieram os homens com quem dormi

Já o objeto De onde vieram os homens com quem dormi se trata de um mapa criado no Google Maps – suporte acessível a qualquer usuário do Google, que pode criar seu próprio mapa, marcando, nomeando e inserindo notas em pontos geográficos. Em meio a tantos outros mapas com pretensões pragmáticas, esse objeto chama a atenção pelas narrativas inseridas nas notas de sete pontos geográficos – Rio de Janeiro, London, São Bernardo do Campo, Amsterdam, Napoli, Buenos Aires e Natal – em que temos histórias que giram em torno justamente do eixo proposto pelo título: os homens, suas origens, e os episódios em que a narradora se envolveu com eles. A autoria do objeto é atribuída a Julia Debasse – cantora, performer e artista visual -, que conta com mais dois mapas na mesma linha: De onde vieram os homens que beijei e De onde vieram os homens que amei.

De onde vieram os homens com quem dormi

A mecânica hipertextual do objeto se resume às convenções de funcionalidade do Google Maps. Temos a lista dos pontos geográficos marcados num menu à esquerda, e o mapa tomando o resto da página (figura acima). Ao clicar num desses pontos, o mapa o localiza, enquanto o menu da direita dá lugar à nota com a narrativa em torno do homem daquela localidade (figura abaixo), sendo possível retornar ao menu inicial a qualquer momento. Trata-se de uma mecânica simples, estruturada para fins práticos e hackeada para fins poéticos (hackeio no sentido empregado pela pesquisadora Carolina Gainza, de se apropriar da técnica para então desviá-la de sua função apriori) .

De onde vieram os homens com quem dormi – narrativa de Buenos Aires

OWNED – um novo jogador

O terceiro e último objeto, OWNED – Um novo jogador, tem sua autoria atribuída à escritora, tradutora, jornalista e editora Simone Campos, que é doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada na UERJ, com um projeto de tese sobre games. Constam também nos créditos Filipe Moura como webdesigner, Vinícius Lima como ilustrador, Douglas Donin como programador e Jorge Viveiros de Castro como Editor. Trata-se de um “livro interativo”, tendo sido selecionado por mim o objeto cujo acesso se faz através do próprio site (acesso gratuito) – pois uma narrativa de mesmo nome também se encontra disponível em PDF (download gratuito) e outra em versão impressa publicada pela editora 7 Letras (onde é vendido e classificado como romance).

A hipertextualidade em Owned conduz a uma navegação uniforme na maior parte de sua narrativa, com apenas um hiperlink ao final de cada módulo – equivalente ao virar da página de um livro. Em alguns módulos pontuais será exigida uma escolha, bifurcando então a narrativa por meio da oferta de dois ou mais hiperlinks que conduzirão o leitor a módulos distintos (figura abaixo). Advém daí o efeito de causalidade das ações do interator, não sendo possível retornar ao módulo anterior.

Em sua interface, Owned ainda dispõe ao usuário a possibilidade de consultar um inventário – objetos adquiridos em consequência de algumas escolhas – e um menu com as opções de “reiniciar o jogo” ou salvá-lo em um dos três “slots” (para esta última opção é preciso realizar um cadastro). Como o universo da narrativa mergulha na cultura digital e, mais especificamente, no universo dos vídeo-games, o interator conta ainda com um glossário de termos mais específicos.

OWNED – inventário

Cultura do meio impresso

Pensando nos âmbitos que envolvem o objeto editorial, como foi discutido na última aula – interlocução, inscrição material e circulação -, ocorre-me uma série de questionamentos sobre o quanto a cultura do meio impresso ainda pesa sobre os objetos digitais e, principalmente, sobre esses que querem se legitimar como literatura.

Tomo como exemplo As Doze Cores do Vermelho, cuja apresentação (“versão online do romance de Helena Parente Cunha”) se ancora num objeto impresso. Já foi mencionado anteriormente que a autoria desse objeto digital é atribuída, ainda e somente, à autora do romance impresso, que não parece ter se envolvido no processo de remidiação. Contudo, para além disso, quero me deter em alguns aspectos da inscrição material da narrativa propriamente, comparando como se deu isso nas diferentes materialidades.

No romance impresso de Helena Parente Cunha há uma inscrição material inusitada para o gênero: páginas divididas em três colunas, equivalentes a linhas temporais de três momentos (e vozes) da protagonista – passado (eu), presente (você), futuro (ela). Essas três linhas temporais convivem num mesmo capítulo, encontrando-se emparelhadas na horizontal, cada uma com seu trecho autônomo. Trata-se de uma oferta de percursos para além da linearidade das páginas, podendo o leitor optar por seguir apenas uma linha temporal (uma coluna) ou, de forma mais convencional, a sequência dos capítulos mesmo, com a suas três colunas temporais. Há, portanto, uma hipertextualidade funcionando desde já, dentro das possibilidades e constrangimentos do meio impresso.

“versão online do romance de Helena Parente Cunha”

Já na chamada “versão online”, há uma fragmentação ainda maior desses capítulos, possibilitada no meio digital por aquilo que Manovich chamará de “modularidade”. Enquanto na página impressa conviviam as três colunas (linhas temporais) de um mesmo capítulo, no objeto digital será disposto “módulos” contendo apenas o fragmento de uma só linha temporal de determinado capítulo. A hipertextualidade no meio digital, oferecendo-se de modo mais amigável, disponibilizará então um modo de navegação por meio de hiperlinks como já descrito anteriormente: setas na horizontal (esquerda e direita) para acessar outra linha temporal de um mesmo capítulo, e setas na vertical (para cima e para baixo) para se acessar outro módulo de uma mesma linha temporal.

É curioso pensar como a direção das setas estabelecidas para a navegação nos parece natural, e não consequência da lógica da cultura impressa e mesmo da escrita ocidental. Ir para esquerda ou para cima é sempre um movimento de retorno, para um estado anterior da narrativa, enquanto ir para direita ou para baixo é sempre um movimento progressivo. Reproduz a lógica da página do romance impresso, onde as colunas das linhas temporais encontram-se ordenadas progressivamente da esquerda para a direita: passado, presente e futuro. Teria a remidiação então ter se limitado a isso? A tornar a estrutura hipertextual mais amigável no meio digital?

É a impressão que se tem num primeiro momento. Mas ainda há outra questão posta pela modularidade no meio digital: o todo não é apreendido. O leitor perde a referência do tamanho da obra (se é que podemos ainda chamar de obra um objeto assim, sem todo definido ou acessível a priori). Por isso mesmo o objeto digital pode explorar, em seu hiperlink de entrada, um algoritmo de aleatoriedade para lançar o leitor em qualquer um dos módulos existentes, proporcionando um início distinto para cada experiência. A partir desse início, ele então pode escolher para onde prosseguir em meio a essa teia de temporalidades. A ordem combinatória dos vários módulos (passíveis ou não de serem acessados) é determinada pelas escolhas desse leitor – chamado de “interator” por Janet Murray –, ressignificando-os e convergindo para um sentido dado pela singularidade desse percurso. O percurso singular, ainda que possa ser reproduzido no meio impresso, não encontra a mesma fluidez combinatória nesse meio, pois, mesmo havendo possibilidade de hipertextualidade, esta se realiza por meio de saltos na estrutura de um todo palpável, uniforme e de fronteiras determinadas.

Espacialidade

Quando falamos de percurso de leitura, estamos falando de um deslocamento em que espaço?

Janet Murray identifica como uma das quatro características do meio digital a “espacialidade”: “podemos verificar a relação de um espaço virtual com outro ao refazer nossos passos”. Ao navegarmos pela internet, por exemplo, vamos nos localizando conforme nosso percurso: há sempre um espaço virtual anterior e um posterior, pelo qual nos deslocamos através dos hiperlinks. É possível retornar a um espaço anterior, retomar o espaço seguinte, retornar e experimentar outro espaço. Cada espaço contem em si vínculos para diversos outros espaços, onde as escolhas do navegador singularizam um percurso em detrimento de possíveis outros.

Essa espacialidade existe enquanto materialidade no objeto digital. Deslocamentos similares no meio impresso não funcionariam da mesma maneira: seriam saltos dentro de uma linearidade dada por sua diferença material – uma sequência de páginas uniforme. Números de páginas ou capítulos, por exemplo, parecem fazer pouco sentido numa narrativa digital que explora devidamente “as características expressivas do meio” (GAINZA, 2018). Por isso, também não faz muito sentido dizer que obras como “O Jogo da Amarelinha”, de Cortázar, já faziam isso que literatura digital vem experimentando. No objeto digital a hipertextualidade é outra: modularizada, potencializada e com uma interface mais amigável.

Arquitetura múltipla e combinatória

Sigo pensando a espacialidade no meio digital enquanto a arquitetura que materializa os potenciais percursos de leitura dentro de uma organização modular que se dispõe desierarquizada, para além da linearidade sequencial do meio impresso. Nas narrativas digitais, caracterizadas pela hipertextualidade, o leitor/interator é invocado a todo momento a fazer escolhas, sem as quais a história não prossegue. Ele se move dentro da narrativa, adentrando, a cada escolha, em um novo módulo, um novo espaço, ao mesmo tempo em que pretere outros. Vai formalizando seu trajeto singular dentro de uma estrutura cujo todo lhe é vedado, como um labirinto.

Essa estrutura labiríntica está para além de um enredo ou um conjunto de cenas: é arquitetura de todo um mundo de possibilidades narrativas. Não se trata mais de um texto fixo, mas a “invenção e organização de padrões expressivos que constituem uma história multiforme” (MURRAY, 2003). Ainda que o meio digital pré-disponha todos os módulos textuais de imediato e sem hierarquia, a criação de um objeto digital pressupõe uma circunscrição em torno desses módulos e das articulações possíveis entre eles, de modo que as várias ofertas de percurso, em suas singularidades e no conjunto, incorram num sistema coerente. Extrapolando a exploração da estrutura linguística, estamos diante de uma

[…] arte combinatória, uma arte potencial, em que, em vez de se ter uma “obra” acabada, tem-se apenas seus elementos e suas leis de permutação definidas por um algoritmo combinatório.

(Arlindo Machado em seu artigo
“Hipermídia: o labirinto como metáfora”)

Esse movimento do interator pela narrativa hipertextual faz parte da encenação que esse novo leitor é invocado a assumir. Encenação de fato, pois suas escolhas tem implicações dramáticas. Resultam num percurso singular dentro das possibilidades estabelecidas por uma arte combinatória. Portanto, essa arquitetura pela qual ele se move é diegética, ou seja, é incorporada pela própria narrativa, seja como representação de um um fluxo de consciência (caso de As Doze Cores do Vermelho), seja como representação da própria vida enquanto repercussão das escolhas diárias que ela exige (caso de OWNED – um novo jogador). Em todo caso, é sempre a metáfora de um labirinto:

Não tendo a visão global do labirinto, o navegante precisa fazer cálculos locais, de curto alcance, para decidir o que fazer em seguida. Esses cálculos jamais levam em consideração o todo, visto que este é inalcançável; eles apenas processam informações locais de uma encruzilhada, ou das encruzilhadas adjacentes. Uma rede dotada de um sistema de cálculos autônomos em cada encruzilhada é um sistema descentrado e, nesse sentido, o labirinto simula a vida e o funcionamento das sociedades […]

(Arlindo Machado, ainda no mesmo artigo)

Obra e Autoria narrativas hipertextuais

Na narrativa digital – mais propriamente nas narrativas hipertextuais aqui discutidas -, vimos que o leitor é invocado a encenar, ou seja, sua participação (escolhas) é essencial para o prosseguimento e o rumo da história.

Pensando na noção de autoria – cuja estabilidade (já tão comprometida) foi ainda mais problematizada pelos meios digitais – pergunto-me se, de fato, o leitor vem ganhando espaço em sua constituição. Tendo a concordar com Janet Murray quando ela diz:

Há uma distinção entre encenar um papel criativo dentro de um ambiente autoral e ser o autor do próprio ambiente. É evidente que interatores podem criar aspectos das histórias digitais em todos esses formatos, com o maior grau de autoria criativa sendo alcançado naqueles ambientes que refletem a menor quantidade possível de prescrições. Mas os interatores podem atuar dentro das possibilidades estabelecidas quando da escritura e da programação de tais meios. Eles podem construir cidades simuladas, experimentar estratégias de combate, traçar um caminho único através de uma teia labiríntica ou até impedir um assassinato, mas, a menos que o mundo imaginário não passe de um baú de fantasias com avatares vazios, todas as encenações possíveis do interator serão chamadas à existência pelo autor original.

Contudo, problematizando, penso que há uma significativa diferença entre “construir cidades simuladas” e “traçar um caminho único através de uma teia labiríntica”. Me vejo diante da (ainda mal formulada) hipótese de que um objeto editorial digital pode vagar entre dois extremos: entre ser uma obra (termo que já se demonstra problemático no meio digital, mas não me ocorre nada melhor) e ser uma plataforma.

Explico-me: quero dizer com “obra” um objeto constituído por certa coesão simbólica em que a atuação do interator “dentro das possibilidades estabelecidas” ainda se encontram razoavelmente dentro das expectativas desse “autor original”. É um objeto que estabelece um sentido em sua fruição (penso aqui na noção de discurso constituinte de Maingueneau), ainda que um sentido relativamente aberto. E quero dizer com “plataforma” um objeto que constitui um ambiente em que o papel criativo do interator (e talvez aqui seja melhor chamá-lo de “usuário”) extrapola essas expectativas, sendo possível conceber de fato um discurso outro.

(Pensando alto… E ainda tenho que pensar muito sobre.)

Entre Táticas e Estratégias

Ainda sobre a relação entre entre leitor, autor e obra – com todas a problematização que essas noções trazem hoje, potencializadas pelo meio digital -, penso especificamente nas narrativas hipertextuais: sobre como funciona essas relações numa “arquitetura múltipla e combinatória” em que há a formalização singular de um texto em cada ato de leitura.

Retomo a ideia do percurso de leitura como navegação dentro de um espaço. A partir disso, ocorre-me pensar esses atos de leituras segundo as ideias de “Tática” e “Estratégia” de Michel de Certeau. Cito Sophia Beal pensando o espaço de Brasília na literatura segundo essas ideias:

Para revelar o poder transformador das práticas cotidianas das pessoas (tais como o caminhar, conversar e habitar), Certeau estabelece uma distinção entre estratégia e tática. Os governos, corporações, instituições e outros grupos produzem e impõem estratégias que definem ambientes. No caso de uma cidade, por exemplo, a disposição das ruas e as linhas de metrô constituem estratégias. Embora a população urbana seja bastante limitada pelas estratégias de uma cidade, há alguma margem de ação. As pessoas podem desviar do traçado das ruas tomando um atalho pela grama de um parque – ou, muitas vezes de forma inconsciente, encontrar formas alternativas de driblar as estratégias da cidade quando isso pode lhes trazer benefícios. Certeau refere-se a esses métodos individualizados e espontâneos como táticas.

Começo a pensar então nos objetos literários digitais – constituídos por essa “arquitetura múltipla e combinatória” – como sistemas instituídos pela estratégia de uma autoria. As escolhas oferecidas, os percursos possíveis, os sentidos ali em negociação, tudo é chamado à existência “pelo autor original”. As táticas, por sua vez, seriam os “métodos individualizados” de um interator para extrapolar as vias da estratégia autoral. Quanto maior a singularização (formal) de um ato de leitura/interação, maior a criatividade tática exercida pelo interator ou/e maior a complexidade da estratégia autoral? É nessa questão que ainda se embaraça minhas divagações…

Vou tentar, no próximo post, conciliar toda essa viagem com o conteúdo discutido na última aula.

Fixos/Fluxos eVerticalidades/Horizontalidades

Algumas questões:

Ao considerar a autoria como estratégica, ou seja, possibilidades de sentido normatizados nas intenções de uma figura autoral; e a leitura como tática, ou seja, desvio do sentidos previstos por uma estratégia autoral; é possível pensar a autoria como uma verticalidade e a leitura como uma horizontalidade?

Ou seria mais produtivo pensar o objeto livro como fixo, cujos fluxos (práticas de leitura) foram apropriados pelo meio digital na forma de outros fixos (blogs, redes sociais, etc), desencadeando outros fluxos (a leitura hipertextual de caráter enciclopédico por meio de “cliques”, por exemplo)? E assim, sendo papel da arte “desprogramar a técnica” (Arlindo Machado), eu deveria me voltar à análise dos fluxos que o objeto digital literário tem proporcionado, em sua constituição como fixo, para além desses?

Na verdade, estou pouco seguro de que apreendi as noções acima exploradas, ou mesmo de que elas possam servir a esse tipo de reflexão. Por isso as questões tão levianamente soltas aqui, lançadas a quem interessar (e me socorrer) possa…

Debray, Machado e Murray em diálogo

As implicações da materialidade inscricional, segundo Debray:

O utensílio de inscrição modifica o espírito do traçado, mas também os traços do espírito de um tempo, o estilo de um Zeitgeist. (…) Tábuas de pedra, tabuinhas de argila, tijolo, papiro, pergaminho, papel, fita magnética, tela catódica: a natureza dos suportes comanda um pouco mais que um estilo e cada procedimento de memorização suscita um tempo peculiar.

O impasse entre materialidades precedentes e o meio digital, segundo Murray:

O poder caleidoscópico do computador permite-nos contar histórias que refletem com maior autenticidade nossa sensibilidade da virada do século.  Não acreditamos mais numa realidade singular. [….] no entanto, retemos o desejo humano fundamental de fixar a realidade sobre uma tela apenas, de expressar tudo que vemos de modo integrado e simétrico.”

As possibilidades de representação no meio digital, segundo Machado:

A hipermídia permite justamente exprimir tais situações complexas, polissêmicas e paradoxais que uma escritura sequencial e linear, plena de módulos de ordem, jamais poderia representar. (…) Através de suas bifurcações, de suas proposições múltiplas e ambíguas, das ligações móveis e provisórias entre suas partes, a hipermídia permite representar o pensamento não assentado dos espíritos que contendem entre si, como a confirmar a máxima de Mikhail Bakhtin de que a verdade tem sempre uma expressão polifônica.

A materialidade em objetos digitais como “As doze cores do Vermelho“, para além de seu texto, representa a arquitetura de um fluxo de consciência. A inscrição da hipertextualidade numa disposição modular das informações, como só poderia ter sido inscrita no meio digital, é o que caracteriza essa representação.

No caso de “OWNED – Um Novo Jogador“, sua interface de “game” – com seus menus e a possibilidade de “salvar o jogo” – também só foi possível devido à materialidade em que foi inscrita. Contudo, ao se utilizar ainda do número de página como referência, percebemos o impasse ante a materialidade precedente, o livro, como forma de localizar e legitimar a literatura.

O Fluxo Hipertextual

De que modo o fluxo hipertextual no meio digital se difere do fluxo no meio impresso (pensando ainda num livro como “O Jogo da Amarelinha” de Cortázar)?

O hiperlink, no meio digital, funciona como ponte entre um módulo textual e outro. A disposição das informações em fragmentos textuais relativamente autônomos e desierarquizados (modularidade) permite que os hiperlinks formalizem uma continuidade que não estava ali até o instante em que o leitor a ativasse por meio do clique, correspondendo a uma escolha de percurso de leitura. O meio digital, amigável à sintaxe do hipertexto, acaba por gerar a percepção dessa arquitetura textual percorrida: há um trajeto que se revela (e toma forma) conforme as decisões tomadas durante ato de leitura – assim como a consciência das estruturas veladas nas opções preteridas dessa mesma arquitetura. É válido lembrar ainda que, no meio digital, tal arquitetura se faz potencialmente infinita.

Assim, se a cultura é um “conjunto de sistemas de objetos inextrincavelmente ligados a conjuntos de sistemas de ações” (Milton Santos), a literatura digital vai, aos poucos, redefinindo a cultura literária. Ao se inscrever em novos objetos e requisitar novas ações em suas práticas de leitura e formas de circulação, a própria noção de literatura – imposta sobre os novos fixos por sua verticalidade canônica, de uma cultura impressa alicerçada em noções como autoria e obra acabada – acaba por se desestabilizar. A matéria inscricional ganha visibilidade por meio das diversas possibilidades de interface que, paradoxalmente, devem ser pensadas como recursos de imersão de um universo fictício que se constrói para além da estrutura linguística. E, mais que um conjunto de cenas, a narrativa digital vai se constituindo pelo seu sistema de oferta de escolhas, seu princípio combinatório, o funcionamento de um universo dramaticamente coeso e significante dentro de uma lógica algorítmica.